Sancionada há seis meses pelo presidente Jair Bolsonaro, a nova Lei de Improbidade Administrativa, que modificou o entendimento sobre atos ilícitos contra a gestão pública, começa a ter efeitos práticos. O número de ações apresentadas pelo Ministério Público Federal (MPF) sobre o tema caiu mais da metade neste ano, segundo levantamento exclusivo obtido pelo GLOBO. Além disso, políticos têm usado a mudança nas regras como argumento para escapar de processos que respondiam na Justiça. Alguns deles já conseguiram.
É o caso do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, absolvido semana passada na ação que o responsabilizava pelo caos no sistema de saúde em Manaus, onde pacientes morreram asfixiados por falta de oxigênio em janeiro do ano passado. O motivo: a nova lei prevê punição apenas se for comprovado o dolo, ou seja, quando há a intenção de dano por parte dos gestores. O próprio Bolsonaro tenta usar a mudança na legislação que ele mesmo chancelou como argumento para se livrar da acusação de manter uma funcionária fantasma em seu gabinete quando era deputado federal. A defesa argumenta que, pela nova regra, não se trata de ato de improbidade.
Outro a usar a flexibilização da lei em um processo foi o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), aliado do Palácio do Planalto. Após a aprovação da norma, ele pediu o arquivamento de uma ação na qual já foi condenado em instâncias inferiores e atualmente está no Superior Tribunal de Justiça. Procurada, a defesa de Lira afirmou que ele não foi o autor da proposta e nem votou na sessão. Ele é acusado de desvios na Assembleia Legislativa de Alagoas quando era deputado estadual. Lira nega as acusações.
A Lei de Improbidade Administrativa foi criada em 1992 com o objetivo de combater a sensação de impunidade, em meio ao impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello. O principal argumento de parlamentares ao flexibilizá-la foi o de que era preciso atualizar a legislação para evitar excessos, como um prefeito correr o risco de perder o mandato por atrasar uma prestação de contas. A mudança teve apoio tanto de governistas quanto da oposição no Congresso.
Agora é preciso que se comprove o “dolo”, ou a intenção expressa, do agente público para condená-lo. Defensores da mudança afirmam que ela impede que erros administrativos sejam enquadrados como improbidade. E que um efeito colateral da legislação anterior era inibir bons profissionais de tomarem parte na gestão pública, temendo serem alvo de processos.
Número de ações
Outra crítica recorrente à antiga lei, e que norteou a mudança, era de que o texto legal era muito amplo e vago. De fato, seis meses depois da sanção da nova lei, o escopo mais restrito do texto em vigor fez reduzir o número de ações. Alguns procuradores e promotores, por outro lado, questionam o esvaziamento da possibilidade de apresentação de ações. Avaliam que a exigência de comprovar o dolo inviabiliza boa parte dos processos, mesmo quando está provado que a conduta de um agente público causou prejuízo aos cofres públicos.
O número de ações de improbidade apresentadas pelo Ministério Público Federal nos quatro primeiros meses deste ano foi o menor dos últimos cinco anos. Foram 121 novos processos, menos da metade das 250 ações ajuizadas no mesmo período de 2021, quando já havia sido observada uma queda em relação aos anos anteriores por causa da pandemia. O levantamento é da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão, órgão do MPF responsável pelos casos de corrupção e improbidade administrativa, feito a pedido do GLOBO.
Na avaliação do procurador do caso de Pazuello, José Gladson, a nova lei reduziu “significativamente” a possibilidade de enquadrar condutas que ofendem os princípios da administração pública em ato de improbidade. Foi o próprio Ministério Público Federal que pediu a absolvição após a mudança na legislação.
— Um exemplo: assédio moral praticado por um servidor contra outro. A conduta não era prevista expressamente nos incisos (da lei), mas era possível a responsabilização por ofender gravemente os princípios da legalidade, da moralidade, da honestidade. Hoje, só é possível responsabilizar condutas expressamente previstas nos incisos — afirmou o procurador.
No pedido que fez para livrar Bolsonaro do caso envolvendo Walderice da Conceição, a Wal do Açaí, suspeita de ser funcionária fantasma da Câmara, a Advocacia-Geral da União citou duas alterações implementadas pela nova lei. A primeira foi o novo limite de prazo para as investigações, que passou a ser de dois anos — a apuração envolvendo a ex-servidora se arrasta desde 2019. A outra foi a ausência de dolo.
A subprocuradora-geral da República Samantha Dobrowolski, uma das autoras de uma nota técnica da PGR sobre a aplicação da nova lei, afirma que o tipo de prova exigido atualmente dificultou a punição:
— Fica mais difícil punir o particular que se enriquece ilicitamente à custa do erário, porque será preciso comprovar que, além de se beneficiar do ato de improbidade, ele tinha conhecimento e agiu com a finalidade de se locupletar. É uma prova muito difícil de se obter. Em outro caso em que a nova regra permitiu a absolvição, os ex-ministros Gilson Machado (Turismo), Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Tarcísio Gomes de Freitas (Infraestrutura) foram processados por não usarem máscaras de proteção contra a Covid-19 na inauguração de uma ponte em Sergipe, no ano passado.
A própria Procuradoria desistiu do processo. O entendimento foi que a nova lei listou os atos específicos que podem ser considerados improbidade administrativa e que, nesse caso, não se enquadram.
O advogado e ex-juiz Márlon Reis, idealizador da Lei da Ficha Limpa, apresentou uma ação direta de inconstitucionalidade ao Supremo Tribunal Federal pedindo a derrubada de trechos da lei. O processo está sob relatoria do ministro André Mendonça.
Para o presidente do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac), Roberto Livianu, a lei não pode ser aplicada retroativamente para absolver alvos de ações já existentes, como ocorreu no caso de Pazuello. Isso só seria possível em casos criminais.
Defensores dizem que mudanças freiam abusos; críticos falam em brecha para impunidade
O projeto que flexibilizou a Lei de Improbidade Administrativa foi aprovado sob o argumento de gestores públicos e parlamentares, tanto do Centrão quanto da esquerda, de que o enquadramento na legislação, em diversas circunstâncias, gerava injustiças. Já o Ministério Público (MP) e alguns juristas argumentam que as novas regras abrem espaço para a impunidade.
Um dos pontos mais controversos da nova lei é o que prevê que a responsabilização só ocorra se houver comprovação de dolo, ou seja, intenção de lesar o poder público.
Especialistas em direito argumentam que a redação antiga era usada pelo MP e pela advocacia pública para enquadrar qualquer irregularidade como improbidade administrativa. Para essa corrente, o novo texto limita o abuso de autoridade contra gestores públicos.
Apesar de limitar a ação do MP e da advocacia a ações com dolo comprovado, especialistas alertam que gestores públicos podem cometer atos de improbidade sem dano aos cofres públicos ou enriquecimento próprio. Um exemplo é a divulgação de informações que beneficiem agentes financeiros. A nova lei dificultaria esse enquadramento.
Outra mudança foi no prazo para prescrição de crimes de improbidade, que passou de cinco para oito anos a ser contado a partir do suposto ato ilegal, e não do fim do mandato, como era antes. Defensores do novo arcabouço jurídico afirmam que inúmeros casos de investigações não são concluídos por parte das autoridades, o que afeta a imagem e o andamento do mandato do gestor público. Críticos afirmam que os recursos disponíveis à defesa e a lentidão do sistema Judiciário podem garantir a impunidade em determinados casos.
A restrição ao Ministério Públicos da competência para propor ações de improbidade também gerou controvérsias. Os apoiadores da medida argumentam que a Advocacia Geral da União e as Procuradorias Gerais Estaduais têm outros caminhos para punir quem cometeu um ato lesivo ao erário, como os mecanismos previstos na lei anticorrupção aprovada em 2013. Afirmam também que a alteração evita o uso desse instrumento para perseguição política, principalmente nas advocacias municipais.
Já os críticos afirmam que o novo texto retira o direito do ente público lesado de buscar a reparação do dano. União, os estados e municípios ficarão dependentes da atuação do MP, que terá um tempo menor de investigação, estabelecido pela nova lei.
FONTE: O GLOBO