1. É possível, no regime de contratação integrada da Lei 12.462/2011 (RDC), a transferência do licenciamento ambiental ao contratado, não apenas pela superveniência da Lei 14.133/2021 (nova Lei de Licitações e Contratos), a qual admite a atribuição do licenciamento ambiental ao particular (art. 25, § 5º, inciso I), mas também para compatibilizar o emprego da contratação integrada com o referido licenciamento.
Em auditoria realizada com o objetivo fiscalizar a execução das obras de “implantação, pavimentação, restauração e obra de arte especial da BR-135/MG, Trecho Rodoviário Itacarambi/MG – Divisa MG/BA, subtrecho Manga/MG – Itacarambi/MG”, objeto do Contrato 227/2022, firmado entre o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) e o consórcio vencedor da licitação proveniente do Edital RDC 90/2022, que previu o regime de contratação integrada para a execução do empreendimento, foram identificados alguns achados, entre os quais mereceu destaque o seguinte: “licitação com previsão irregular da transferência de titularidade do licenciamento ambiental e com injustificada avaliação dos impactos decorrentes da ampliação do objeto contratual”. O aludido achado se referia, em essência, à suposta irregularidade na transferência da titularidade do licenciamento ambiental para o consórcio contratado, “ao passo que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) possuiria entendimento contrário, no sentido de que o Dnit seria o empreendedor e, por conseguinte, o detentor dessa titularidade”. No entendimento da equipe de auditoria, a transferência da titularidade ao contratado, “ainda que como cotitular”, estaria em desacordo com o art. 82, incisos IV e V, da Lei 10.233/2001, assim como com os arts. 1º, inciso II; 2º, caput e § 1º; 3º, caput; 10, inciso II; 11; 13; 14; 15 e 16, todos da Resolução Conama 237/1997, e, ainda, com o entendimento do TCU estabelecido nos subitens 9.3.1 e 9.3.2 do Acórdão 1005/2003-Plenário. Consoante a equipe de auditoria, não seria então permitida a inclusão, no edital, de serviços inerentes ao processo de licenciamento ambiental, juntamente com serviços de elaboração de projetos e execução de obras, nos termos do mencionado acórdão, o qual determinara ao Dnit que não incluísse, nos editais de certames licitatórios, disposição que obrigasse os próprios licitantes a providenciarem as licenças ambientais exigidas para a execução das obras, e que ele mesmo adotasse as medidas para a obtenção de tais licenças. De acordo com a equipe de auditoria, a contratação integrada exigiria, a teor do art. 9º, §2º, inciso I, alínea “d”, da Lei 12.462/2011 (RDC), que o edital contivesse como anexo um anteprojeto com “os parâmetros de adequação ao interesse público, à economia na utilização, à facilidade na execução, aos impactos ambientais e à acessibilidade”. Com base nesses apontamentos, a equipe propôs as oitivas do consórcio contratado e do Dnit, por vislumbrar possibilidade de o TCU determinar a anulação do certame e do contrato dele decorrente. Em seu voto, o relator discordou do posicionamento da equipe de auditoria, entendendo que a irregularidade seria “insubsistente”. Em primeiro lugar, para ele, dever-se-ia reconhecer o tratamento dado à matéria pela Lei 14.133/2021 (nova Lei de Licitações e Contratos), que dispôs, em seu art. 25, § 5º, acerca da possibilidade de transferência do licenciamento ambiental ao contratado, nos seguintes termos: “Art. 25. O edital deverá conter o objeto da licitação e as regras relativas à convocação, ao julgamento, à habilitação, aos recursos e às penalidades da licitação, à fiscalização e à gestão do contrato, à entrega do objeto e às condições de pagamento. […] § 5º O edital poderá prever a responsabilidade do contratado pela: I – obtenção do licenciamento ambiental; II – realização da desapropriação autorizada pelo poder público” (grifo do relator). Nesse ponto, assinalou que o legislador da nova Lei de Licitações e Contratos pretendeu claramente se aproximar de práticas usadas nas concessões e parcerias público-privada (PPPs), em que há, comumente, delegação ao particular das atividades relacionadas com o licenciamento ambiental e com os procedimentos para concretizar as desapropriações necessárias ao empreendimento. A seu ver, faria sim sentido incumbir o particular de realizar essas atividades na contratação integrada, “pois a lei exige estudos de engenharia em nível de detalhamento de anteprojeto para início da licitação, enquanto vários dos órgãos ambientais exigem estudos de engenharia em nível de detalhamento de projeto básico para emissão da licença prévia ambiental”. Na sequência, após registrar que o art. 115, § 4º, da Lei 14.133/2021 também prevê que “nas contratações de obras e serviços de engenharia, sempre que a responsabilidade pelo licenciamento ambiental for da Administração, a manifestação prévia ou licença prévia, quando cabíveis, deverão ser obtidas antes da divulgação do edital” (grifo do relator), asseverou: “Contrario sensu, se a responsabilidade pelo licenciamento ambiental for do particular, por óbvio seria o caso de admitir a publicação do edital sem a licença ambiental prévia”. Dessa forma, para compatibilizar a licitação da obra no regime de contratação integrada, realizada também a partir de um anteprojeto, “o Poder Público teria dificuldades de obter o licenciamento ambiental do empreendimento. Some-se a isso as dificuldades notórias para a administração pública contratar e receber projetos e estudos ambientais”. Outrossim, pontuou que a nova Lei de Licitações e Contratos ainda dispõe que será motivo para a rescisão do contrato, nos termos do art. 137, inciso VI, o “atraso na obtenção da licença ambiental, ou impossibilidade de obtê-la, ou alteração substancial do anteprojeto que dela resultar, ainda que obtida no prazo previsto”, e que o contratado, conforme o art. 137, § 2º, inciso V, terá direito à rescisão do contrato no caso de “não liberação pela Administração, nos prazos contratuais, de área, local ou objeto, para execução de obra, serviço ou fornecimento, e de fontes de materiais naturais especificadas no projeto, inclusive devido a atraso ou descumprimento das obrigações atribuídas pelo contrato à Administração relacionadas a desapropriação, a desocupação de áreas públicas ou a licenciamento ambiental”, donde concluiu que “o risco de o poder público assumir o encargo do licenciamento ambiental é imenso, pois a experiência com a execução de obras de infraestrutura demonstra que tal etapa atrasa com frequência, interferindo na execução do contrato, podendo inclusive ensejar a sua rescisão, nos termos da Lei 14.133/2021”. Dito isso, externou seu entendimento no sentido de que a transferência de etapas do licenciamento ambiental ao contratado também seria possível no âmbito do RDC, exclusivamente quando adotado o regime de contratação integrada previsto na Lei 12.462/2011, como ocorrera no caso concreto em apreciação. Afirmou que esse regime de contratação, além de prever a elaboração do projeto básico pelo próprio contratado, admite a apresentação de projetos com metodologias diferenciadas de execução (art. 9º, § 3º), razão por que vários editais do Dnit “têm admitido que o particular desenvolva projeto geométrico da rodovia com diferentes traçados, desde que respeitadas diversas condições de contorno, o que pode impactar no licenciamento ambiental e na desapropriação do empreendimento. Não é apenas o projeto geométrico que está inter-relacionado com o licenciamento ambiental da obra, mas também a definição de jazidas, áreas de bota-fora, pedreiras e areais pelo particular, que rotineiramente tem arcado com tais riscos, os termos da alocação de riscos que costuma a ser adotada pelo Dnit em sua matriz de riscos de obras rodoviárias padronizada”. Na sequência, enfatizou não desconhecer que, no âmbito do Acórdão 2725/2016-Plenário, o TCU determinara ao Dnit que apresentasse ao Tribunal plano de ação com vistas a exigir a obtenção da licença prévia ambiental antes da licitação de obras pelo regime de contratação integrada do RDC, todavia considerou necessário revisitar esse entendimento, “não apenas pela superveniente edição da Lei 14.133/2021 admitindo a atribuição do licenciamento ambiental ao particular, mas também para compatibilizar o emprego da contratação integrada com o licenciamento ambiental”. Reforçou que, naquela oportunidade, não fora aceita a argumentação do Dnit sobre a possibilidade de se dispensar a licença prévia na fase de anteprojeto e que a obtenção das licenças durante a fase de elaboração do projeto básico/executivo conferiria maior celeridade ao processo de licenciamento. Sustentou, ademais, que, caso a empresa contratada para execução das obras apresentasse projeto básico/executivo com alterações permitidas em relação ao previsto no anteprojeto, o projeto deveria ser novamente submetido ao órgão ambiental para avaliação das novas propostas face à licença previamente concedida, “assumindo o particular o ônus e o risco de tais alterações”. Em outros termos, o relator afirmou que “a vantagem de se exigir as licenças ambientais apenas na fase de projeto básico/executivo é que as alterações implementadas com relação ao anteprojeto são discutidas de forma integrada pelas áreas de projeto, meio ambiente e desapropriação e seriam aceitas pelo Dnit previamente à submissão do projeto aos órgãos licenciadores, gerando licenças ambientais condizentes com a situação das obras”. Com relação ao entendimento disposto nos subitens 9.3.1 e 9.3.2 do Acórdão 1005/2003-Plenário, utilizados como critério de auditoriapela equipe de fiscalização, observou que “o assunto foi apreciado sob a égide da Lei 8.666/1993, cujo projeto básico exige o tratamento adequado do impacto ambiental do empreendimento”, e que, “em juízo preliminar”,não seria adequado“transpor tal orientação para o regime de contratação integrada instituído por legislação superveniente (Leis 12.462/2011, 13.303/2016 e 14.133/2021), com características notadamente diversas”. Quanto à controvérsia sobre a titularidade do processo de licenciamento ambiental, considerou que a legislação citada pela unidade técnica (art. 82, incisos IV e V, da Lei 10.233/2001 e os arts. 1º, inciso II; 2º, caput; 3º, caput; 10, incisos I e II; 11; 13; 14; 15 e 16 da Resolução Conama 237/1997) não continha absolutamente nenhuma disposição que dissesse expressamente que tal incumbência seria do Dnit. Assim sendo, a discussão sobre a titularidade do processo de licenciamento decorreria de interpretações diversas do Dnit, do Ibama e da equipe de auditoria sobre os mencionados dispositivos, mas não propriamente de expressa disposição legal ou normativa. Reputou então, “nos termos da visão consequencialista trazida pelo art. 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro”, que a definição da titularidade do licenciamento ambiental do empreendimento seria “uma questão acessória, de pouca importância prática”, sendo suficiente a expedição de recomendação ao Ibama e ao Dnit com vistas à adoção, no âmbito de suas esferas de atribuições, das medidas cabíveis para “adequar a regulamentação interna dos processos de licenciamento ambiental e dos processos de contratação pública, respectivamente, de forma a contemplar o disposto no art. 25, § 5º, da Lei 14.133/2021, segundo o qual os editais de licitação de obras públicas podem prever a responsabilidade do contratado para a obtenção do licenciamento ambiental do empreendimento”, no que foi acompanhado pelos demais ministros.
Acórdão 1912/2023 Plenário, Auditoria, Relator Ministro Benjamin Zymler.