Artigo Gazen | Evolução histórica do tratamento de propostas inexequíveis em licitações

O primeiro diploma legal sobre licitações e contratos públicos no ordenamento jurídico brasileiro foi o Decreto nº 2.926/186210, publicado ainda durante o período imperial e que vigeu até 1922, no período da Primeira República.

Com o fim do absolutismo e a instalação de uma monarquia constitucional, estabelecida pela Constituição de 192411, surgiu o conceito de que a Administração Pública deveria governar para o povo e não para si própria, de maneira que foi natural que se tentasse regrar as contratações públicas, porém de forma ainda muito incipiente. Neste primeiro regramento, a preocupação com a vedação ao oferecimento de propostas inexequíveis foi abordado de forma indireta pelos artigos 3º; 12; 17; 20; 28; 31; 32 e 37, que, em linhas gerais, obrigavam o contratado a executar o contrato nas condições pactuadas e lhe cominavam multas e demais responsabilidades financeiras pelas falhas na execução, as quais deveriam ser garantidas por fiança.

Estas determinações foram um importante marco inicial tanto para as licitações como para a tentativa de barrar as contratações por preços inexequíveis, contudo, evidentemente, o sistema de multas e responsabilizações financeiras não era suficiente para reparar a Administração Pública pelo não recebimento do objeto contratado, além de que, não se pode olvidar, que a impessoalidade da Administração Pública ainda era muito pouca na época, de forma que, infelizmente, com frequência, as normas legais eram flexibilizadas.

Entre 1922 e 1967, período que compreendeu o fim da Primeira República, a Era Vargas, a Segunda República e o início do Regime Militar as compras e contratações públicas foram reguladas pelo Decreto nº4.536/192212, que demonstrou muito menos preocupações com o oferecimento de propostas inexequíveis, uma vez que, embora previsse que os contratos públicos deveriam respeitar as disposições do direito comum e tributário e a prestação de caução, também previu a possibilidade de relevação de multas, conforme se observa nos artigos 64, alínea h; 56 e 57 do referido diploma legal.

No contexto de uma Administração Pública ainda muito autoritária e pouco transparente, os regramentos para as compras e contratações públicas eram meras formalidades básicas, que frequentemente se adequavam ou eram subvertidas por decisões arbitrárias dos Agentes Públicos.

Entre 1967 e 1986, período que corresponde à maior parte do Regime Militar, as licitações públicas (pela primeira vez chamadas por este nome) foram reguladas pelo Decreto Lei 200/196713, que, em seus artigos 135 e 136 mantiveram a tradição de uma preocupação implícita com as propostas inexequíveis, cominando multas e outras sanções para as falhas de execução contratual, bem como prevendo a prestação de garantia para o pagamento destas multas e de outras eventuais obrigações.

O Decreto Lei 200/1967, embora publicado em um período de Administração Pública extremamente autoritária, demonstrou a faceta burocratizadora da Administração Pública da época e foi um importante avanço da área das licitações e dos contratos públicos ao regrar de forma específica os procedimentos licitatórios, de uma maneira nunca antes feita na legislação brasileira, porém ainda não foi capaz de enfrentar diretamente o oferecimento de propostas inexequíveis em licitações.

Entre 1986 e 1993, período da Redemocratização Brasileira, as licitações e os contratos públicos foram regrados pelo Decreto Lei 2.300/198614, que foi a primeira legislação a enfrentar diretamente o problema das propostas inexequíveis em licitações, ao prever a) a desclassificação das mesmas, em seus artigos 36, §3º, e 38, inciso II e b) em seu artigo 37, inciso IV, as licitações com preço base, em que a competição se daria dentro de uma janela de valor máximos e mínimos, estabelecidos pela Administração Pública, além da manutenção das previsões de sancionamentos para falhas na execução contratual.

O Decreto Lei 2.300/1986 foi editado em um contexto de redemocratização, em que além da burocratização já estabelecida no regime militar, era necessário dar publicidade e passar uma ideia de justiça no processos administrativos, haja vista que estava sendo inaugurada uma nova era, com uma Administração Pública democrática e menos autoritária.

Este diploma legal foi um gigantesco avanço na área das licitações e dos contratos públicos, haja vista que foi o primeiro a abordar de forma específica e extremamente minuciosa o tema, sendo um esboço do que viria a ser a Lei 8.666/93, a primeira Lei de Licitações e de Contratos Públicos.

Entre 1993 e 2023, já na terceira e atual república brasileira, vigeu a Lei de Licitações nº 8.666/199315, que- embora tenha abolido a modalidade de licitação com preço-base, a qual era criticada por limitar possíveis economias nas contratações públicas- abordou de forma ainda mais específica as propostas inexequíveis nas licitações, em seu artigo 48.

A Lei 8.666/93 foi publicada em uma época em que já estava estabelecida uma Administração Pública democrática, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, em um momento em que os decretos presidenciais eram uma lembrança indesejada do período do regime militar e em que a aurora democrática impunha a edição de normas jurídicas produzidas pelo Congresso Nacional, razão pela qual, com as devidas atualizações e modificações, o Decreto 2.300/1986 foi substituído pela Lei 8.666/1993. Esta legislação foi a primeira Lei (stricto sensu), de licitações, de forma que os debates políticos ocorridos durante a sua legislação, criaram um diploma legal de grande qualidade.

A partir de 2021, ainda coexistindo com a Lei 8.666/93 até o fim de 2023, as licitações e os contratos públicos são regrados pela Nova Lei de Licitações, a Lei 14.133/2021. Esta Lei não trouxe importantes avanços em relação à sua antecessora no enfrentamento das propostas inexequíveis em licitações, cuja previsão se encontra em seu artigo 59:

Art. 59. Serão desclassificadas as propostas que:
( .)
III- apresentarem preços inexequíveis ou permanecerem acima do orçamento estimado para a contratação;
IV- não tiverem sua exequibilidade demonstrada, quando exigido pela Administração;
( .)
§ 2º AAdministração poderá realizar diligências para aferir a exequibilidade das propostas ou exigir dos licitantes que ela seja demonstrada, conforme disposto no inciso IV do
caput deste artigo.
§ 3º No caso de obras e serviços de engenharia e arquitetura, para efeito de avaliação da exequibilidade e de sobrepreço, serão considerados o preço global, os quantitativos e os preços unitários tidos como relevantes, observado o critério de aceitabilidade de preços unitário e
global a ser fixado no edital, conforme as especificidades do mercado correspondente.
§ 4º No caso de obras e serviços de engenharia, serão consideradas inexequíveis as propostas cujos valores forem inferiores a 75% (setenta e cinco por cento) do valor orçado pela Administração.
§ 5º Nas contratações de obras e serviços de engenharia, será exigida garantia adicional do licitante vencedor cuja proposta for inferior a 85% (oitenta e cinco por cento) do valor orçado pela Administração, equivalente à diferença entre este último e o valor da proposta, sem prejuízo das demais garantias exigíveis de acordo com esta Lei. (grifos nossos)

A Lei 14.133/2021 é uma legislação publicada já na era digital, sendo um diploma legal que apenas repristina grande parte das normas da Lei 8.666/93 e traz para dentro da Lei de Licitações os regramentos que eram acessórios à Antiga Lei de Licitações, como a Lei 1.2462/201116, que regrava o Regime de Contratações Diferenciadas (RDC); a Lei 10.520/200217, a Lei do
Pregão; e o Decreto 1.024/201918, que regrava o pregão eletrônico, sendo uma legislação que apenas aglutinou em um mesmo texto legal as normas já aplicadas no universo das licitações, que evoluiram na direção de uma Administração Pública digital e pós burocrática (gerencial)1, sem apresentar significativas novidades, o que significou a perda de uma relevante oportunidade de melhor combater as propostas inexequíveis em licitações.

Assim sendo, perceba que, em mais de 150 anos, o combate às propostas inexequíveis em licitações evoluiu, desde uma preocupação implícita e focada na mera previsão de responsabilização pecuniária do contratado por eventuais embaraços na execução dos contratos administrativos até o enfrentamento direto deste problema, mediante a previsão de desclassificação de propostas inexequíveis em licitações e com a manutenção da previsão de sancionamentos em caso de problemas na execução contratual, contudo, na prática, infelizmente, a identificação de uma proposta como inexequível ainda é muito difícil, o que faz com que, todos os anos, a Administração Pública celebre um grande número de contratos fadados ao insucesso.

CARLOSPACHECO
OAB/RS128.644

PRISCILA JARDIM
OAB/RS126.157

MAURÍCIOGAZEN
OAB/RS71.456

[ .] A transição da administração burocrática clássica, herdada da tradição continental européia, densamente impregnada da visão estatista, com seu corte hierárquico e autoritário de inspiração franco-prussiana, para a administração gerencial moderna, fortemente influenciada pela postura pragmática das mega-empresas assim como pela exigência de transparência praticada no mundo anglo-saxônico, desloca o foco de interesse administrativo do Estado para o cidadão, do mesmo modo que, antes, a transição da administração patrimonialista, que caracterizava o absolutismo, para a administração burocrática, já havia deslocado o foco de interesse do Monarca para o Estado (p.39)19.

Gazen Advogados

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