As recentes enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul têm deixado marcas profundas em todos os setores da sociedade gaúcha. Com a rápida intensificação das inundações, muitos não puderam elaborar um plano estratégico para lidar com as consequências econômicas negativas desencadeadas por essa catástrofe. No que diz respeito aos contratos firmados entre particulares, em situações imprevisíveis como esta que o estado está enfrentando, a parte que sofre com o desequilíbrio contratual originado por este fato poderá recorrer à Teoria da Força Maior ou ao Caso Fortuito.
Em linhas gerais, a Teoria do Caso Fortuito é caracterizada por eventos imprevisíveis e inevitáveis originados de ações humanas, como guerras ou greves. Já a Teoria da Força Maior se aplica a eventos inevitáveis, muitas vezes decorrentes da natureza.
É fundamental destacar que as enchentes no Rio Grande do Sul podem ter sido desencadeadas puramente pela força da natureza, caracterizando-as como eventos de força maior, ou devido à falta de manutenção no sistema de contenção de cheias, falhas de projeto e até negligência com medidas básicas de prevenção, configurando assim um caso fortuito. No entanto, dado que até o momento não foi apurada pelos órgãos responsáveis eventual responsabilidade de agentes públicos, optamos por considerar o evento como um caso de força maior, para fins de análise e compreensão.
O Código Civil brasileiro, ao regulamentar as obrigações pactuadas entre particulares, estabelece em seu artigo 393 que o devedor não será responsabilizado pelo descumprimento contratual em casos de força maior ou caso fortuito – mas isso nas relações havidas entre particulares. E nos contratos administrativos existentes entre um particular e a Administração Pública, qual o impacto da decretação de estado de calamidade pública? Considerando que o Decreto Legislativo n° 36 de 2024, publicado no dia 07 de maio de 2024, oficializa o estado de calamidade pública no Estado do Rio Grande do Sul, torna-se relevante entender tal questão.
A já revogada Lei 8.666/93 – ainda em vigor para contratos cujo instrumento tenha sido assinado antes da entrada em vigor da Nova Lei de Licitações – prevê e elenca, a partir do artigo 77, as possibilidades de rescisão contratual face ao descumprimento das obrigações. Entretanto, há ressalvas. Vejamos o artigo 78 e dois incisos que dizem respeito à atual situação enfrentada:
Art. 78. Constituem motivo para rescisão do contrato:
XIV – a suspensão de sua execução, por ordem escrita da Administração, por prazo superior a 120 (cento e vinte) dias, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna ou guerra (…), assegurado ao contratado, nesses casos, o direito de optar pela suspensão do cumprimento das obrigações assumidas até que seja normalizada a situação;
XV – o atraso superior a 90 (noventa) dias dos pagamentos devidos pela Administração decorrentes de obras, serviços ou fornecimento, ou parcelas destes, já recebidos ou executados, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna ou guerra, assegurado ao contratado o direito de optar pela suspensão do cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação;
O primeiro inciso trazido a conhecimento, o XIV, determina que é motivo de rescisão contratual a suspensão da execução dos serviços, por mais de 120 dias, exceto em casos de calamidade pública. Isto significa dizer que, caso uma obra ou serviço esteja paralisada por mais de 120 dias, poderá ocasionar na rescisão contratual; entretanto, há uma ressalva, qual seja, os casos de calamidade pública. Nesta seara, a empresa contratada poderá suspender o serviço até que ocorra a normalização da situação de calamidade pública.
O segundo inciso colacionado para tratar da possibilidade de suspensão por força maior é o XV, que determina que o contrato com o Ente poderá rescindido caso a Administração atrase mais do que 90 (noventa) dias os pagamentos devidos. Aqui, igualmente ao inciso anterior, também há a ressalva: exceto em casos de calamidade pública.
O mesmo está disposto na Nova Lei de Licitações, no artigo 137. §§ 2º e 3º. Vejamos:
§ 2º O contratado terá direito à extinção do contrato nas seguintes hipóteses:
II – suspensão de execução do contrato, por ordem escrita da Administração, por prazo superior a 3 (três) meses;
III – repetidas suspensões que totalizem 90 (noventa) dias úteis, independentemente do pagamento obrigatório de indenização pelas sucessivas e contratualmente imprevistas desmobilizações e mobilizações e outras previstas;
(…)
IV – atraso superior a 2 (dois) meses, contado da emissão da nota fiscal, dos pagamentos ou de parcelas de pagamentos devidos pela Administração por despesas de obras, serviços ou fornecimentos;
§ 3º As hipóteses de extinção a que se referem os incisos II, III e IV do § 2º deste artigo observarão as seguintes disposições:
I – não serão admitidas em caso de calamidade pública, de grave perturbação da ordem interna ou de guerra, bem como quando decorrerem de ato ou fato que o contratado tenha praticado, do qual tenha participado ou para o qual tenha contribuído;
Oportuno mencionar, ainda, que a já revogada Lei 8.666/93 prevê que, por meio de acordo entre as partes – contratante e contratada – os contratos podem sofrer alterações posteriores ao acordo inicial caso se esteja diante de casos de força maior:
Art. 65. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos:
II – por acordo das partes:
d) para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de conseqüências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual.
O mesmo está disposto na Nova Lei de Licitações:
Art. 124. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos:
II – por acordo entre as partes:
d) para restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe ou em decorrência de fatos imprevisíveis ou previsíveis de consequências incalculáveis, que inviabilizem a execução do contrato tal como pactuado, respeitada, em qualquer caso, a repartição objetiva de risco estabelecida no contrato.
Os casos de força maior, como o da enchente do Rio Grande do Sul, podem causar o desequilíbrio na relação contratual, onerando a contratada, por inúmeros motivos, haja vista a suspensão de diversas atividades da sociedade. Nestes casos, como bem determina o artigo, para restabelecer a relação inicialmente contratada entre as partes podem, de comum acordo, alterar os termos do contrato, visando a continuidade da prestação dos serviços.
Ademais, tal previsão vai ao encontro dos Princípios da Proporcionalidade e da Razoabilidade, porquanto este tipo de relação contratual deve ser proporcional para ambos os lados, por meio da ponderação do que está acontecendo na realidade e o que foi contratado no início, onde tais fatos não eram, sequer, conhecidos.
Por fim, importante destacar que, em que pese se esteja diante de possibilidade de suspensão dos contratos devido a fatos de Força Maior, o artigo 78 da já revogada Lei 8.666/1993, ainda traz a possibilidade da contratada rescindir o contrato por causa de fatos imprevisíveis. Vejamos:
Art. 78. Constituem motivo para rescisão do contrato:
XVII – a ocorrência de caso fortuito ou de força maior, regularmente comprovada, impeditiva da execução do contrato.
O mesmo está previsto na Nova Lei de Licitações. Vejamos:
Art. 137. Constituirão motivos para extinção do contrato, a qual deverá ser formalmente motivada nos autos do processo, assegurados o contraditório e a ampla defesa, as seguintes situações:
V – caso fortuito ou força maior, regularmente comprovados, impeditivos da execução do contrato;
Portanto, para as empresas que estão lidando com os impactos inevitáveis das enchentes, pode ser necessário recorrer aos dispositivos legais que permitem a suspensão ou rescisão dos contratos com base na Teoria da Força Maior. É crucial que essas empresas comecem a organizar medidas e meios para comprovar que se tornou impossível enfrentar as consequências negativas das enchentes, o que facilitará o processo de comprovação no futuro.
COORDENADORES
GIOVANI FIGUEIREDO GAZEN
MAURICIO GAZEN
MARCELO GAZEN
EQUIPE RESPONSÁVEL
PRISCILA JARDIM
SANDRO ULGUIM RAMOS
CARLOS PACHECO
LAURA GAZEN