Informativo TCU 485

1. A exigência de qualificação técnica referente a novas tecnologias ou materiais deve ser avaliada frente à possibilidade de que tal requisito frustre o caráter competitivo da licitação, fomente a formação de cartéis ou comprometa o desenvolvimento da engenharia nacional.

Auditoria realizada em 2024 teve por escopo a verificação da conformidade do Edital de Licitação Eletrônica 143/ADLI-1/SBRJ/2022, publicado pela Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero), cujo objeto era a elaboração dos projetos básico e executivo, bem como a execução de “Runway End Safety Area (RESA)/Engineered Materials Arresting System (EMAS)”, regularização da faixa preparada e realização de obras complementares no Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro/RJ, sob o regime de contratação integrada, prevista no art. 42, inciso VI, da Lei 13.303/2016 (Lei das Estatais). Consoante exposto pela equipe de auditoria do TCU, a RESA é uma área simétrica ao longo do prolongamento do eixo da pista de pouso e decolagem, adjacente ao fim da faixa de pista, tendo por objetivo principal a redução do risco de danos a aeronaves que toquem o solo antes de alcançar a cabeceira ou que ultrapassem o fim da pista. Para reduzir tal risco e cumprir os requisitos de segurança, tecnologias como o EMAS foram desenvolvidas, constituindo-se em sistema de parada de aeronaves que utiliza materiais projetados para se deformarem sob o peso dos trens de pouso, proporcionando a repentina desaceleração das aeronaves, de forma a diminuir significativamente a distância de parada. Ao apreciar o relatório de auditoria, o relator constatou que a planilha do orçamento estimativo da licitação, divulgada aos licitantes, continha apenas verbas globais de etapas da obra, a exemplo do item 02.03.00.00.004 (Execução da EMAS), avaliado em mais de R$ 40 milhões, o qual “não estava detalhado em outros serviços com os quantitativos propriamente avaliados”, e do item 02.03.00.00.003 (Execução de Estrutura), orçado em aproximadamente R$ 13 milhões. Tal constatação levou o relator a perquirir se o disposto no art. 42 da Lei 13.303/2016 estaria sendo devidamente observado pela Infraero, o qual dispõe: “§ 2º No caso dos orçamentos das contratações integradas: I – sempre que o anteprojeto da licitação, por seus elementos mínimos, assim o permitir, as estimativas de preço devem se basear em orçamento tão detalhado quanto possível, devendo a utilização de estimativas paramétricas e a avaliação aproximada baseada em outras obras similares ser realizadas somente nas frações do empreendimento não suficientemente detalhadas no anteprojeto da licitação, exigindo-se das contratadas, no mínimo, o mesmo nível de detalhamento em seus demonstrativos de formação de preços;” (grifos do relator). Em juízo preliminar, ele considerou que os elementos constantes do anteprojeto da licitação presentes no site da Infraero permitiriam estimar os quantitativos e respectivos preços unitários dos serviços que compunham o item 02.03.00.00.003 (Execução de Estrutura). A despeito de reconhecer a discricionaridade quanto à adoção de orçamento sigiloso pela Infraero, o relator solicitou que a equipe de auditoria se manifestasse acerca da observância do disposto na parte final do art. 34 da Lei das Estatais, que impõe a divulgação aos licitantes dos quantitativos de serviços e demais informações necessárias à elaboração de suas propostas: “Art. 34. O valor estimado do contrato a ser celebrado pela empresa pública ou pela sociedade de economia mista será sigiloso, facultando-se à contratante, mediante justificação na fase de preparação prevista no inciso I do art. 51 desta Lei, conferir publicidade ao valor estimado do objeto da licitação, sem prejuízo da divulgação do detalhamento dos quantitativos e das demais informações necessárias para a elaboração das propostas.” (grifos do relator). Além disso, também chamou a atenção do relator, ao analisar preliminarmente os termos do Edital de Licitação Eletrônica 143/ADLI-1/SBRJ/2022, a disposição constante do seu subitem 12.6.1, que relaciona o seguinte documento no rol de exigências de qualificação técnica: “c) Comprovação que a licitante tenha executado/instalado o Engineering Material Arresting System – E.M.A.S. em Aeroporto(s). Nota: Para a comprovação do E.M.A.S. deverá ser apresentado contrato firmado na época da execução ou declaração de administrador aeroportuário, além de documento que comprove a homologação do sistema E.M.A.S. executado, podendo este último ser: Carta de Aeródromo ADC (Aerodrome Chart) que demonstre a implantação do E.M.A.S. ou declaração ou portaria de homologação do órgão regulador de aviação do país ou Atestado Técnico Operacional.”. Nesse ponto, o relator destacou o seguinte trecho extraído da impugnação do edital formulada por um dos potenciais interessados: “trata-se de serviço que, ao que foi possível levantar, foi executado uma única vez em território nacional, de modo que não há competidores nacionais habilitados para tanto. Não obstante, o item 4.1.2 de Edital obstaculiza o ingresso concorrencial de empresas estrangeiras, exigindo que as mesmas, se interessadas no certame, obrigatoriamente se aliem a empresas nacionais em consórcio”. Para o relator, haveria similitude com a situação examinada no Acórdão 2992/2011-Plenário, no âmbito do qual fora determinado à Infraero que: “9.3.2.2. no caso da existência de monopólio ou oligopólio na execução de serviço usualmente subcontratado, com pequeno número de empresas aptas ao fornecimento de determinado equipamento ou domínio da tecnologia construtiva tecnicamente e materialmente relevantes, abstenha-se de solicitar atestados de capacidade técnica relativos à comprovação de experiência para a sua execução;” (grifos do relator). Naquele acórdão, discutira-se a exigência de atestados de pontes de embarque, medida considerada restritiva pelo TCU por conta da reduzida quantidade de construtoras potencialmente detentoras desse acervo técnico. Em princípio, segundo o relator, aquele mesmo entendimento poderia ser aplicado no caso do EMAS. Por conseguinte, ele restituiu os autos à equipe de auditoria para a adoção das seguintes providências, entre outras: “a) se manifestar sobre a observância ou não do disposto na parte final do art. 34 e no art. 42, § 2º, incisos I e II, da Lei 13.303/2016, no âmbito do Edital de Licitação Eletrônica 143/ADLI-1/SBRJ/2022; b) analisar a conformidade da exigência consubstanciada na alínea “c” do subitem 12.6.1 e o seu potencial impacto na competividade do certame.”. De imediato, a equipe solicitou informações à Infraero, obtendo a seguinte resposta: “A INFRAERO disponibilizou os projetos: Estudos Preliminares, Representações gráficas, memoriais de cálculo e especificações técnicas por disciplina, além de topografia e sondagens. Informamos que o nível de detalhe empregado em nossos anteprojetos permite o levantamento dos quantitativos pelos licitantes interessados, considerando a maturidade e particularidade da etapa de Anteprojeto. Assim, não há prejuízo ao disposto no art. 34 da Lei 13.303/2016.”. Ademais, a equipe de auditoria juntou aos autos volumoso conjunto de composições de custo unitário elaboradas pela Infraero, e que foram objeto de exame. Em seu voto, ao se reportar especificamente à composição de custo unitário do item 02.02.00.00.004 (Execução da EMAS), extraído do orçamento, o relator ressaltou que “a verba global da execução da EMAS está decomposta em outros vários serviços com quantitativos propriamente avaliados, acompanhados das respectivas composições de custo unitário”, entendendo assim que a Infraero cumpriu o disposto no art. 42, § 2º, incisos I e II, da Lei 13.303/2016, pois, a despeito de se tratar de contratação integrada, a entidade elaborou o orçamento estimativo tão detalhado quanto possível, não fazendo uso de estimativas expeditas e paramétricas nas parcelas do objeto que poderiam ser quantificadas a partir dos elementos constantes do anteprojeto. Ele frisou, no entanto, que a mesma documentação juntada aos autos demonstrava não ter havido cumprimento da parte final do art. 34 da Lei das Estatais, pois não fora disponibilizado aos licitantes o “detalhamento dos quantitativos e das demais informações necessárias para a elaboração das propostas”. Na sequência, o relator enfatizou que não basta disponibilizar o anteprojeto com elementos que permitam aos possíveis interessados o levantamento dos quantitativos, exigindo a lei que os quantitativos de serviços sejam disponibilizados aos potenciais concorrentes no mesmo nível de detalhamento que foram produzidos pela estatal contratante. Dito de outra forma, o uso da contratação integrada “faculta à estatal fazer uso de estimativas expeditas e paramétricas, naquela parte do objeto que não esteja suficientemente detalhada no anteprojeto (art. 42, § 2º, inciso I), mas, optando a estatal por um anteprojeto mais detalhado que permita a elaboração de uma planilha orçamentária, com os quantitativos devidamente apurados, tais informações devem ser repassadas aos licitantes, segundo o mens legis do art. 34”. E tal assertiva, continuou o relator, “vale para a parcela do anteprojeto que permita a estimativa de quantidades, devendo estas obrigatoriamente serem informadas aos participantes do certame”. A seu ver, a sistemática adotada pela Infraero aumenta o custo de transação dos licitantes para a formulação de suas propostas, “custo este que obviamente será repassado ao poder público”, não sendo “tarefa simples nem rápida”examinar a completude do anteprojeto de um empreendimento de grande vulto e complexidade,“como o que ora se analisa, e ter que “quantificar todos os serviços e custos envolvidos”. Ademais, a ausência de disponibilização de informações sobre os serviços e respectivos quantitativos aos licitantes “favorece a redução da competitividade no certame, já que potenciais competidores eventualmente não tenham interesse em investir recursos nos levantamentos necessários para formulação de suas propostas”, isso sem falar no “risco de seleção adversa nesta forma de agir, pois essas incertezas e assimetria de informações podem conduzir a certames em que os menores preços são apresentados justamente por licitantes que não conseguem compreender os riscos e custos da execução contratual, e por isso apresentam propostas que não conseguirão manter durante toda a sua duração, ao tempo que afastam bons construtores, que realizaram levantamentos mais criteriosos”. No que concerne às exigências de habilitação técnica do referido certame, a equipe de auditoria levantou que houve duas impugnações contra a cláusula editalícia 12.6.1, alínea “c”, e que foram respondidas pela Infraero nos seguintes termos: “A experiência da INFRAERO na contratação e fiscalização das obras de instalação do sistema EMAS do Aeroporto de Congonhas permite com assertividade definir os requisitos mínimos de habilitação exigidos, a bem do interesse público. Destacamos ainda, que até mesmo as demais obras que integram o escopo da presente licitação ocorrerão em ambiente aeroportuário, em área crítica, sobre regras rígidas e específicas, devendo causar mínimo impacto às operações aéreas, o que por si, já exigem uma habilitação técnico-operacional qualificada. Portanto, a margem de erro admissível é mínima, o que requer qualificação prévia específica. Ao contrário do que afirma o impugnante, ao menos duas empresas nacionais possuem habilitação técnico-operacional de instalação do sistema EMAS e a permissão de participação de empresas estrangeiras em consórcio com empresa nacional, visa ampliar o caráter competitivo do certame na busca da proposta mais vantajosa, PROTEGENDO A ENGENHARIA NACIONAL. Portanto, como já afirmamos, não há qualquer restrição ao caráter competitivo do certame. O inconformismo apresentado pela impugnante também já fora enfrentado quando do processo licitatório de implantação do sistema EMAS no Aeroporto de Congonhas, em 2021, e validado o entendimento pelo Tribunal de Contas da União.” (grifos no original). Não obstante reafirmar a complexidade do objeto e a necessidade de assegurar a adequada conclusão do empreendimento, e também que a instalação do EMAS representava a parcela de maior relevância técnica e valor significativo, o relator considerou que a exigência trouxe prejuízo à competividade do certame, porquanto duas das maiores construtoras do Brasil teriam impugnado a referida exigência. Apesar de considerar um avanço o emprego de novas tecnologias nas obras públicas, salientou a necessidade de que “a exigência dos respectivos atestados técnicos tenha que ser avaliada com muita cautela”. Nesse sentido, “não basta o serviço ter valor significativo para que possa ser exigida a apresentação de atestados técnicos. A comprovação de qualificação técnica para determinado serviço tem de ser condição essencial para a garantia do cumprimento das obrigações por parte do contratado. Ademais, a aludida prática estaria comprometendo o desenvolvimento da engenharia nacional e restringindo indevidamente as licitações, na medida em que novos materiais e tecnologias surgem a cada ano, especialmente nos países desenvolvidos, com o seu desempenho já sido testado.”. Destarte, “se houver a exigência de atestados técnicos para tais serviços, muitas empreiteiras brasileiras estariam simplesmente impedidas de participar das licitações, comprometendo a competitividade dos certames e fomentando o surgimento de cartéis”. No caso concreto, arrematou o relator, a apresentação de quatro propostas no certame e o desconto obtido desaconselhavam a adoção de “medida mais drástica, não havendo, pois,“óbice em dar por encerrada tal questão”. Ao final, o relator propôs, e o Plenário decidiu, cientificar a Infraero das seguintes constatações no Edital de Licitação Eletrônica 143/ADLI-1/SBRJ/2022: a) “nos termos do disposto na parte final do art. 34 da Lei 13.303/2016, não foi disponibilizado aos licitantes o detalhamento dos quantitativos e das demais informações necessárias para a elaboração das propostas, já que as previsões de serviços e respectivas quantidades já tinham sido levantadas pela Infraero a partir das informações colhidas no anteprojeto que fundamentou a licitação”; b) “a exigência de qualificação técnica constante do subitem 12.6.1 do instrumento convocatório, por exigir comprovação de serviço realizado uma única vez em território nacional, pode ter restringido o caráter competitivo da licitação, em aparente desconformidade com a determinação endereçada à Infraero por meio do subitem 9.3.2.2 do Acórdão 2.992/2011-Plenário”. Além disso, o Pleno decidiu recomendar à Infraero que, em futuras licitações de obras públicas, avalie a real necessidade de exigir atestados técnicos referentes a novas tecnologias ou materiais, quando constatar que tais exigências possam frustrar o caráter competitivo da licitação, fomentar a formação de cartéis ou comprometer o desenvolvimento da engenharia nacional.

Acórdão 1359/2024 Plenário, Auditoria, Relator Ministro Benjamin Zymler.

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