UMA ANÁLISE SOB A ÓTICA DA ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO
O tema do reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos públicos veio à tona com a atual pandemia da COVID-19, principalmente após a aprovação, pelo Congresso Nacional, do Decreto Legislativo nº 6 de 2020, que reconheceu a ocorrência de estado de calamidade pública no país.
No intuito de responder aos questionamentos oriundos do Departamento de Estruturação e Articulação de Parcerias do Ministério dos Transportes acerca do assunto, a Advocacia Geral da União emitiu o Parecer nº 261/2020/CONJUR-MINFRA/CGU/AGU, em 15/04/2020.
O documento se propõe a responder dois questionamentos: (i) se os efeitos negativos da crise provocada pelo coronavírus suportados pelos vários setores de infraestrutura poderiam, juridicamente, consistir em força maior capaz de embasar eventual reequilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão? e (ii) qual(is) seria(m) a(s) condição(ões) para que uma crise econômica dessa magnitude, causada por decisão política de se adotar isolamento social como medida de enfrentamento à rápida transmissão do novo coronavírus fosse considerada um evento de força maior e se poderia-se, ainda, enquadrá-la como Fato do Príncipe.
O parecer se estrutura em três tópicos, sendo que o terceiro, sobre concessões, deixaremos de lado na presente análise.
O primeiro, trata dos aspectos gerais relacionados à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos. O mesmo trata mais a fundo dos contratos de concessão, camada que deixaremos de lado para dar mais enfoque aos contratos administrativos de modo geral na presente análise.
Em análise geral, necessário rememorar a garantia constitucional de manutenção da equação econômico-financeira dos contratos, contida no art. 37, inciso XXI da Carta Magna.
Nesse sentido, leciona Marçal Justen Filho:
Rigorosamente, a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro é um princípio regulador do contrato administrativo. Não é nem direito nem dever de cada parte, mas uma característica do contrato. Pode-se aludir ao direito da parte à recomposição da equação econômico-financeira, sempre que se produzir sua quebra por evento que preencha certos requisitos.
Neste aspecto, o STJ também já se manifestou (REsp 1248237), afirmando que “a manutenção da equação financeira original do contrato de concessão é mais que uma orientação doutrinária vitoriosa, com respaldo jurisprudencial; na verdade constitui princípio erigido sob a égide constitucional desde a Carta de 1969, no art. 167, II, hoje repetido na Constituição Cidadã de 1988, no art. 37, XXI.”
Não se pode esquecer da lição do art. 65, II, “d” da Lei nº 8.666/93, que trata da alteração dos contratos administrativos por acordo entre as partes para “restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração para justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de consequências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual”.
Ainda, o art. 58 da Lei nº 8.666/93. que prevê que, em casos de modificação unilateral dos contratos por determinação da Administração Pública, para fins de melhor adequação ao interesse público, as cláusulas econômico-financeiras devem ser revistas de modo a manter o equilíbrio contratual.
A equação econômico-financeira do contrato se estabelece com base na proposta apresentada pelo concessionário e considerando, além das vantagens, todos os encargos assumidos pelas partes, incluindo os riscos, e que devem estar descritos no instrumento convocatório. A respeito do tema, cabe citar o seguinte trecho de acórdão do Tribunal de Contas da União:
O equilíbrio econômico-financeiro de um contrato administrativo é definido a partir da elaboração do ato convocatório e se materializa com o oferecimento da proposta e assinatura do instrumento contratual. A partir desse momento a lei assegura a manutenção desse equilíbrio convencionado contra eventuais ocorrências futuras que descaracterizem a equação econômica estabelecida. (Parágrafo 118 do Voto no Acórdão nº 371/2006-P/TCU).
Com isso, concluímos que o equilíbrio econômico financeiro do contrato decorre da lei e por esta é garantida a sua manutenção.
O Parecer traz a lição importante de Marçal Justen Filho sobre a abrangência desta equação, que não se resume apenas “ao montante de dinheiro devido ao particular contratado, mas também o prazo estimado para o pagamento, a periodicidade dos pagamentos e qualquer outra vantagem que a configuração da avença possa produzir”.
Conclui o Parecer que “a garantia de intangibilidade da equação econômico-financeira dos contratos administrativos torna obrigatória a manutenção dessa relação entre encargos e vantagens durante toda a vigência do contrato”. E complementa “isso não significa que os encargos e vantagens estabelecidos originalmente no contrato sejam imutáveis; mas apenas que a alteração tanto de encargos como de vantagens requer a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro do contrato”.
Para Marçal Justen Filho, a quebra da equação econômico-financeira pode ocorrer a qualquer instante e configurar-se-á sempre que se produzir alguma espécie de evento superveniente extraordinário, imprevisível ou de consequências incalculáveis, que amplie os encargos ou reduza as vantagens originalmente assumidas pela parte.
Ou seja, faz-se necessária a existência de um fato justificador para a configuração do desequilíbrio.
Entendido o ponto, passa-se ao segundo ponto do Parecer, repita-se, voltando-nos aos aspectos aplicáveis aos contratos administrativos de um modo geral.
Conforme explica Odete Medauar, a teoria da imprevisão encontra expressa previsão no art. 65, II, “d”, da Lei nº 8.666/93. A esse respeito, diz a autora:
A alínea d diz respeito à chamada teoria da imprevisão, que, em síntese, se expressa no seguinte: circunstâncias, que não poderiam ser previstas no momento da celebração do contrato, vêm modificar profundamente sua economia, dificultando sobremaneira sua execução, trazendo déficit ao contratado; este tem direito a que a Administração o ajude a enfrentar a dificuldade, para que o contrato tenha continuidade. Tais circunstâncias ultrapassam a normalidade, revestindo-se de caráter excepcional; por isso passaram a ser incluídas na expressão álea extraordinária. A teoria da imprevisão, própria do direito administrativo, representa, nesse âmbito, o que a cláusula rebus sic stantibus (literalmente, estando assim as coisas, se as coisas tivessem se mantido no mesmo estado) significa nos contratos do direito privado. Na linha clássica, a imprevisão abria ao contratado o direito à indenização, para remediar uma situação extracontratual anormal, com o fim de não paralisar a execução do contrato.
Sobre o tema, assim afirma Marçal Justen Filho:
Ressalte-se que o princípio da intangibilidade da equação econômico-financeira é aplicável não só nas hipóteses de alteração unilateral do contrato. Incide ainda quando a relação original entre vantagens e encargos for afetada por eventos supervenientes imprevisíveis ou, embora previsíveis, de consequências incalculáveis (Lei nº 8.666, art. 65, inc. II, al. “d”).
O entendimento vem sendo sedimentado no STJ, com os julgados REsp 1798728 e Resp 1433434, que concluíram pela aplicabilidade da teoria da imprevisão a contratos administrativos para o fim de restaurar o equilíbrio econômico-financeiro da avença.
Ainda:
O Superior Tribunal de Justiça possui entendimento firme no sentido de que a intervenção do Poder Judiciário nos contratos, à luz da teoria da imprevisão ou da teoria da onerosidade excessiva, exige a demonstração de mudanças supervenientes nas circunstâncias iniciais vigentes à época da realização do negócio, oriundas de evento imprevisível (teoria da imprevisão) ou de evento imprevisível e extraordinário (teoria da onerosidade excessiva).
O Parecer faz, ainda, importante transcrição do Enunciado nº 366 da IV Jornada de Direito Civil organizada pelo Conselho da Justiça Federal:
O fato extraordinário e imprevisível causador de onerosidade excessiva é aquele que não está coberto objetivamente pelos riscos próprios da contratação.
Por fim, necessária a análise do entendimento consolidado da Corte de Contas da União (TC 007.103/2007-7) sobre a aplicabilidade da Teoria da Imprevisão aos contratos administrativos:
Vê-se que, para a aplicação da teoria da imprevisão, é necessário ficar caracterizada a imprevisibilidade do fator causador do desequilíbrio na equação econômico-financeira do contrato; serem extraordinários e inevitáveis os acontecimentos posteriores à contratação; e causarem onerosidade excessiva a uma das partes. Nesse contexto, acontecimento imprevisível deve ser entendido como não previsto pelo gestor médio quando da vinculação contratual, enquanto extraordinário consubstancia-se, basicamente, no que refoge à normalidade.
Sobre a Teoria da Imprevisão, o Parecer em análise é conclusivo quanto à “possibilidade de aplicação da teoria da imprevisão aos contratos administrativos”, mas que, para isso, “é imprescindível que se trate de evento superveniente e extraordinário, cuja ocorrência ou consequências sejam imprevisíveis e inevitáveis e que tenha gerado onerosidade excessiva decorrente de um significativo desequilíbrio no contrato”.
Portanto, para que se possa responder aos questionamentos feitos pelo Departamento de Estruturação e Articulação de Parcerias do Ministério dos Transportes, necessário pois verificar se a pandemia do coronavírus caracteriza-se como força maior.
O Parecer afirma que embora haja distinções doutrinárias entre “força maior” e “caso fortuito”, suas consequências jurídicas são as mesmas e que portanto, no nosso objeto de análise, não se fará distinção dos institutos, uma vez que o próprio Código Civil trata genericamente de ambos.
Sobre o tema, Sílvio de Salvo Venosa:
O parágrafo único do artigo em questão [art. 393 do Código Civil] conceitua o caso fortuito e a força maior como o fato necessário, cujos efeitos não são possíveis evitar, ou impedir. A lei equipara, portanto, os dois fenômenos. Para o código, caso fortuito e força maior são situações invencíveis, que refogem às forças humanas, ou às forças do devedor, impedindo e impossibilitando o cumprimento da obrigação. É o inadimplente que deve provar a ocorrência desses fatos. Há dois elementos a serem provados, um de índole objetiva, que é a inevitabilidade do evento, e outro de índole subjetiva, isto é, ausência de culpa. Deve o devedor provar que o evento surpreendente não poderia ter sido previsto ou evitado.
Quanto ao Coronavírus, o que se sabe, como bem destaca o Parecer, é que ele provavelmente surgiu de uma mutação que permitiu ao vírus, originariamente presente em algum animal silvestre, provavelmente nos morcegos, passar a infectar seres humanos. Sabe-se que o início da pandemia se deu na região de Wuhan, na China, em dezembro de 2019. Dada a facilidade de transmissão, em pouco tempo a doença se espalhou por quase todo o planeta e, em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou situação de pandemia global.
Ademais, bem destaca o Parecer quanto a sua alta letalidade, especialmente em idosos e pessoas imunossuprimidas, o que representa risco grave à saúde pública. Até 27/04/2020, já foram contabilizadas mais de 208 mil mortes pela doença.
As medidas de isolamento social, como se sabe, passaram a ser adotadas no mundo inteiro, restringindo o funcionamento de diversos setores da sociedade, bem como a proibição de aglomeração de pessoas.
Aponta, o documento sob análise, que a disseminação do Coronavírus não poderia ter sido evitada ou prevista. Sequer poderiam os contratados do poder público antever seus efeitos na economia. Ademais, o Parecer entende que “o atual estado de coisas decorrente da pandemia não configura evento cujo risco possa ser considerado comum ou normal” e que “a situação que o mundo está vivenciando foge claramente a qualquer padrão de normalidade”.
Portanto, afirma que lhe parece fora de dúvida de que a pandemia do novo coronavírus pode ser classificada como evento de “força maior” ou “caso fortuito”, uma vez que é certo que – em resposta à disseminação da doença – foram adotadas medidas de restrição da mobilidade das pessoas e mesmo a suspensão de atividades econômicas. Afirma ainda que tais medidas poderiam, eventualmente, ser classificadas como “fato do príncipe”.
Ao final, conclui:
O que importa, ao menos no âmbito desta consulta em tese, é reconhecer que o elemento causador do distúrbio econômico, ainda que indiretamente, consistiu claramente num evento da natureza (mutação e rápida disseminação de um vírus com taxa de letalidade relativamente alta), sendo que esse evento ou pelo menos os seus efeitos não poderiam ter sido previstos ou antecipados pelos concessionários quando da apresentação de suas propostas nos respectivos leilões e tampouco poderiam ter sido por eles evitados. Por conseguinte, parece-me muito claro que a pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2 ) é evento que caracteriza “álea extraordinária”, capaz de justificar a aplicação da teoria da imprevisão.
Portanto, em resposta aos questionamentos do Departamento de Estruturação e Articulação de Parcerias do Ministério dos Transportes, afirma-se que (i) sim, os efeitos negativos da crise provocada pelo coronavírus suportados pelos vários setores de infraestrutura podem, juridicamente, consistir em força maior capaz de embasar eventual reequilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão e que (ii) a condição para tanto é a existência de fato justificável, ou seja, é imprescindível que se trate de evento superveniente e extraordinário, cuja ocorrência ou consequências sejam imprevisíveis e inevitáveis e que tenha gerado onerosidade excessiva decorrente de um significativo desequilíbrio no contrato.
Leia na íntegra aqui.